Assuntos Brutos é um corpo de trabalho do coletivo Brutas que tem como tema as tensões pós-golpe: em resposta ao momento político conturbado inicialmente pelo impeachment da presidenta Dilma que desencadeia um processo de intolerância social com a posse de Michel Temer, modificando rapports de interação entre grupos sociais pelo país inteiro. A exposição aborda as dificuldades de se relacionar e dialogar em meio a posicionamentos intolerantes e violentos em todas as esferas. Nesse sentido pensamos em como estabelecer uma relação com a diferença e na importância do diálogo enquanto ferramenta micropolítica, trazendo para novos contextos perguntas que movem o coletivo desde o seu surgimento em 2015, "Como materializar uma conversa?" é uma delas.
Brutas é um coletivo multidisciplinar de 5 artistas que desde 2015 vem se reunindo para dialogar sobre processos artísticos. O projeto teve início com a procura por um distanciamento geográfico para realização de investigações artísticas e a Residência Encosta na Ilha do Mel se tornou base das primeiras ações do coletivo. O repertório das artistas foi expandido em função das possibilidades e fomentações que o espaço geográfico fez emergir. Conceitos como rede, troca, abrigo, trilha, paisagem e território, foram trabalhados por meio do evento, acontecimento e performance que mais tarde se tornaram publicações, registros das primeiras ações do coletivo, que foram levadas pras principais feiras de publicação do país como Plana e Tijuana.
Em 2017 o coletivo apresentou a exposição Assuntos Brutos, parte da Bienal Internacional de Curitiba, focando principalmente em instalações e objetos.
Em 2019 um novo corpo de trabalho é apresentado na exposição Transáveis, um projeto realizado com apoio do Mecenato Subsidiado da Fundação Cultural de Curitiba e Lei de Incentivo à Cultura. Aberta ao público pela primeira vez em Curitiba, Paraná, em dezembro no Centro Cultural Teatro Guaíra, importante espaço cultural estadual.
Brutas é Érica Storer, Estelle Flores, Gio Soifer, Jéssica Luz e PAC Calory.
Engasgo: Traz um símbolo presente no imaginário do coletivo, a pedra, que aqui assume a corporealidade de um assunto bruto. A instalação se constitui em um vídeo que é reproduzido a partir de uma carteira escolar virada para uma parede branca e reflete sobre a “doutrinação”, palavra constante no discurso da direita. No vídeo, a pedra é engolida e expelida em um loop constante.
“Na órbita dos transáveis transitam memórias, tentativas e rupturas que são próprias da construção coletiva com sua pluralidade de corpos e linguagens.”
(Margit Leisner, Xodó; - texto de curadoria Transáveis, 2018)
A Sala de Espera é uma instalação e uma situação real dentro da exposição. Conveniente para a organização das Transações, ela também cumpre um papel conceitual e físico de comprometimento, tendo sido usada como um protocolo de criação de expectativas. Quem espera já tomou a escolha ativa de ver o que lhe espera, sua vontade, assim, aumenta a cada minuto de tempo investido. Já quem desiste, não o faz sem pensar que perdeu algo, pois abre mão de algo a que outras pessoas escolheram esperar.
A Sala de Espera é onde meditativamente as ações começam, um local onde os preâmbulos imateriais são honrados com ofertas de tempo e sua graça vem em forma de desejo. Composta de capacho, cadeiras, suporte para senha, bebedouro, álcool gel, som ambiente, informações técnicas, texto curatorial, material gráfico de divulgação e as duas primeiras obras da exposição: Classificação Indicativa (frase “esta exposição contém nudez, a sua” serigrafada em placa de acrílico) e Eu escolhi esperar (publicação de 56 páginas e distribuição gratuita), ela também é o local onde as Transações começam, mesmo antes da Mediatrix estar no ambiente.
Classificação Indicativa foi elaborado sob o contexto das censuras á exposições artísticas que discutiam temáticas de gênero e sexualidade no Brasil em 2017. Pertence ao corpo de trabalho Assuntos Brutos, desenvolvido no ano citado, que tem como tema as tensões políticas pós-golpe. Por criar uma relação entre os dois momentos políticos e do coletivo, foi repescada do acervo da Galeria Ponto de Fuga para integrar esta exposição.
O segundo ato, Infalível, é composto por um inflável de aproximadamente 1,7 m de altura, 2,5 de largura e 3m de comprimento quando a base e seus módulos estão inflados e sobrepostos. Este é um objeto cuja dinâmica é construída a partir da contradição entre o momento da voluptuosidade expandida (em estado de apreciação/deleite) e sua decadência, quando o mesmo se revela flácido. Ele é o elefante branco na sala, quando visto de longe ou através de uma foto é um gerador automático de fetiches, mas quando você o encontra na vida real ele é e faz você se sentir desengonçado, fora do lugar. Ocupa mais espaço do que deveria ao mesmo tempo que poderia ser maior, uma idéia perfeita demais para a realidade. Infalível é um desafio à materialidade, o próprio corpo do espetáculo e do contraste: frágil e robusto, habita imaginários porém poucos corpos o procuram.
"Elaboradas com os moldes da arte, as peças presentes nesta obra parecem vibrar na mesma intensidade com que negociam - a cada vez - o seu estatuto de formas sensíveis. Habitam a zona horizontal da gravidade e como nós, seres vivos, carregam seus corpos, estão sujeitas aos climas, ao manuseio, aos esquemas da realidade física. Ao propor uma aproximação de corpos através da arte, Transáveis nos apresenta volumes que se desprendem de uma rota estritamente visual para entrar em negociação com o tátil. Assim, um repertório de questões intangíveis toma para si a problemática da corporealidade e vai flertar com o campo da ação direta para se fazer imagem."
(Margit Leisner, Xodó; - texto de curadoria Transáveis, 2018)
Os demonstráveis, por outro lado, sugerem comportamentos. Inspirados em equipamentos de academia de ginástica, tem a mesma potência sobre o usuário. Lembram o culto ao corpo e o condicionamento que um objeto pode exercer sobre ele a curto e longo prazo. O circuito é composto por 4 máquinas, Disputa, Máquina ou Stra. Bob, Vênus Observa e O dia em que eu caí de boca, trazendo gestos específicos de acordo com cada narrativa particular.
O dia em que eu caí de boca é um exercício de desapego e libertação através da adoração de uma bolinha de borracha misteriosamente suspensa na parede em frente à máquina. A esta bolinha foi dada o nome de Namorado. Catalisador de foco e atenção, mas de natureza patética, o Namorado é fonte de equilíbrio durante a utilização da máquina, que consiste em uma rampa, uma estrutura fixada em uma parede e uma faixa elástica vinílica que permite que o usuário desafie a gravidade se jogando em direção ao Namorado, que permanece sempre em afastamento seguro do sujeito da ação.
Vênus Observa é um convite íntimo ao voyeurismo da respiração. Sua cúpula de acrílico é capaz de tornar física uma expressão invisível do corpo, revelando o ritmo e a intensidade da respiração de quem o usa. Extrapolada em mil usos através das Transações, essa obra traz referências clínicas e biológicas, lidando com não-matérias invisíveis porém essenciais em qualquer processo de excitação.
Depósito de Verdades: A instalação apresenta uma bandeira hasteada em um cenário artificial feito de grama sintética, com um ventilador ligado que faz com o pano esteja sempre esvoaçante. Na bandeira, a frase "depósito de verdades".
Máquina ou Srta Bob, uma traquitana que traz referências delicadas e masoquistas, de uso aparentemente torturante, mas sensação muito mais efêmera do que sua estética, machuca o olhar mais do que o corpo. Ela te coloca em uma posição de humilhação, aquela em que ela sempre esteve e por esse motivo é uma das máquinas mais convidativas ao usuário. Ocupar um espaço de culpa e punição pode ser mais fácil do que se colocar em estado de fruição.
Por fim, como último ato existe a escolha, o público pode escolher entre o Caminho 1, A realidade é bruta, ou o Caminho 2, “Aquela primeira transa meio nervosa que você não consegue fazer nada direito porque está todo mundo tão pilhado depois de um ano de tesão intelectual”, que se encontram em ambientes separados que desembocam fora da exposição. Ambos momentos se tratam do mesmo objeto, uma instalação composta de módulos de espuma, pelúcia e outros materiais, entretanto o apresentam de diferentes formas.
A Realidade é Bruta, é a instalação descrita, permitindo interação do usuário. Trata sobre a materialidade em si e tudo que pode se opõe ao espetáculo. Ao mesmo tempo em que a instalação claramente foi criada com intenção de apelo estético, carece de contexto e é despida de outras ferramentas criadoras de desejo. As quatro paredes que a encerram deixam o usuário sozinho pela primeira vez na exposição, inspirando um momento de retorno energético: expurgos e outras reações são esperadas, pois ela materializa de maneira física e mental, um espaço seguro.
Já no caminho 2, se encontra a obra que recebe o título de Aquela primeira transa meio nervosa que você não consegue fazer nada direito porque está todo mundo tão pilhado depois de um ano de tesão intelectual: uma representação em forma de vídeo da instalação A Realidade é Bruta. No vídeo se encontram as armas de sedução de sua obra-irmã. O espetáculo que só pode pertencer à imaterialidade exige que o encontro permaneça no reino da imaginação. Corpos que são mais vibração do que humanidade se apresentam como o verdadeiro sujeito deste contexto e fetichizam a interação com a instalação. O longo título da obra reflete sobre o transbordamento do desejo para a ansiedade, cruzando um limite de tempo dedicado. A ferramenta de criação do desejo que sob stress pode se tornar geradora de uma inquietude que impede a fruição do tão desejado momento.
A experiência “completa” dos dois caminhos pelo público só acontece através da transgressão ou através da conversa entre pessoas que tomaram caminhos diferentes.
A publicação Eu escolhi esperar compreende uma série de printscreens que mostram um diálogo virtual de duas pessoas que aparecem como um afeto antigo. Outro momento onde se ocupa o limite entre a ficção e a realidade, o livro foi elaborado à partir de uma ação performada virtualmente por duas integrantes do coletivo. Eu Escolhi Esperar oferece ao expectador um começo alternativo à narrativa da exposição onde a mesma pode assumir papel de um ambiente de recondicionamento da habilidade afetiva.
A potência das obras transáveis não se limita ao contato, nem a seus apelos sexuais, mas se expandem aos acordos e negociações em cada estágio da exposição. Em comum a todas as obras, a construção da narrativa é realizada por movimentos mentais, físicos e espaciais dentro e fora da exposição que antecedem a relação de toque com a obra. A expectativa, alimentada pelas respectivas contextualizações, depara-se com a singela realidade do movimento mínimo, resultando às vezes em encanto, às vezes em desilusão.
Durante o período do projeto realizado no Teatro Guaíra em 2019, as obras foram sempre acompanhadas de uma monitoria/performance, a qual chamamos de Transação, conduzida pelas artistas Cali Ossani e Margit Leisner, assumindo o título de Mediatrixes.
A Mediatrix estabelece uma relação de libertação através da autoridade. Uma figura dominante que pode ser desafiada ou não, mas invariavelmente coloca o público em um subspace, onde despido de seu livre-arbítrio, encontra um espaço também livre de responsabilidades. Como um paciente que espera um tratamento, ou uma criança que é guiada por um professor, um pouco da consequência sobre seu próprio corpo fica com a figura de quem comanda as situações.
A Transação tem papel importante na exposição, é considerada como uma obra mas é mascarada nas funções de recepção e monitoria, conduz o público ao limite entre a realidade e a ficção, flertando com o fetiche que cada situação desperta em cada Mediatrix. Ao longo de três meses de exibição diária no Teatro Guaíra em Curitiba, cada artista explorou a narrativa de uso dos objetos de maneira fluída, fazendo da exposição também um laboratório pessoal de percepções e contato com o público, peça fundamental deste processo criativo que acontece por razões intrínsecas mais durante do que antes da exposição.
Brutas é Érica Storer, Estelle Flores, Gio Soifer, Jéssica Luz e PAC Calory
Curadoria: Margit Leisner
Transações: Margit Leisner e Cali Ossani
Produção: Jewan Antunes
Iluminação: Semy Monastier
Edição de vídeo: Lívia Zafanelli
Trilha sonora: Antiline
Costura: Natália Passos
Marcenaria: Bruta.co
Fotos: Gio Soifer e Brian Bogu
Apoio: Mecenato Subsidiado da Fundação Cultural de Curitiba e Lei de Incentivo à Cultura
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